“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Regresso às origens

          Manoel de Oliveira, que já tinha filmado, em 1982, "Lisboa Cultural" e que recorrentemente, ao longo da sua obra, filmou o Porto, sua cidade-natal, por exemplo em "Douro, Faina Fluvial", o seu filme de estreia (1931), e "O Pintor e a Cidade" (1956), para além de nele ter situado alguns dos seus filmes de ficção, dedica-lhe agora o seu mais recente filme documentário, "Porto da Minha Infância", feito para o Porto 2001 - Capital Europeia de Cultura.
          Serve este preâmbulo para dizer que nem o Porto é uma presença acidental nos filmes de Oliveira nem ele é propriamente um documentarista amador.
          Um filme como este, feito para a mão esquerda mas dirigido com a mão direita e narrado a várias vozes, a dele próprio, a de sua mulher, Maria Isabel, a de Agustina Bessa-Luís, dá-nos conta da inspiração do autor no seu melhor, que nele usa um tom confessional que talvez só tenha paralelo na sua obra em "As Pinturas do Meu Irmão Júlio" (1965), em que José Régio fala sobre os quadros do seu próprio irmão, Júlio dos Reis Pereira/Saúl Dias (para além, obviamente, de "A Visita ou Memórias e Confissões", de 1982, que confiou à Cinemateca Portuguesa para que seja mostrado e visto só após a sua morte). Documentarista não acidental, Oliveira agarra agora na sua própria memória do Porto da sua infância, que para nós recorda através da palavra, através de filmes, seus e de outros, através de reconstituições. Mas ao recordar o Porto recorda-se a si próprio como parte da cidade, i. e., recorda a inata presença da cidade em si próprio.
                                     
       O filme tem, neste quadro, aspectos notáveis. Por um lado, a viva e pessoal recordação da cidade e do seu tempo, para o que o cineasta se serve da sua própria voz em off. A esse nível nada poupa e nada esconde da sua vida pessoal, quando criança, quando jovem e quando adulto, desde os acontecimentos filmados a que ele assistiu, e mostra excertos do filme; o seu primeiro beijo infantil, e mostra Carlitos e Teresinha no seu "Aniki-Bobó" (1942); a sua iniciação como espectador de teatro, e representa uma cena da opereta "Miss Diabo", que ele próprio interpreta com Maria de Medeiros; as suas noites de boémia que reconstitui com fidelidade, imaginação e humor que não escondem a saudade. Socorre-se ainda de "Europa, sonho do futuro", de Adolfo Casais Monteiro, que o próprio poeta disse aos microfones da BBC durante a II Guerra Mundial; socorre-se de "Ai há quantos anos", de Guerra Junqueiro, que põe na voz-off encantatória de sua mulher; da sua antiga amiga e cúmplice Agustina Bessa-Luís, que filma enquanto lê um texto seu (e é importante que o tenha feito para que num filme dele ela fique registada em pessoa e voz); e da sua própria memória de um filme acalentado e nunca concretizado dos anos 30, "Os Gigantes do Douro". Por outro lado, a apresentação de documentos da época sobre a casa onde nasceu e onde seu pai morreu (fotografia), sobre a cidade (filmes e reconstituições), sobre o rio Douro, o rio que corre na sua aldeia, de que mostra excertos de "Douro, Faina fluvial" e de "Aniki-Bobó", imagens fílmicas não identificadas e as que filma na actualidade, designadamente no soberbo final, de inspiração poética, do encontro do rio e do mar com a terra, que replica quer o seu filme inicial quer o início musical deste seu filme - para além da apresentação, fundamental, daquele que é considerado o primeiro filme português, "A Saída das Costureiras da Camisaria Confiança", do grande pioneiro Aurélio Paz dos Reis, que replica com a sua própria encenação da saída dos operários das obras do Porto 2001 - tornam este um filme completo e mais que perfeito.
                                           
      Ora o filme é tanto mais admirável quanto Manoel de Oliveira não se coíbe de evocar o seu grupo cultural da juventude, de que faziam parte homens ligados à revista Presença, que esteve na origem do que ficou conhecido por segundo modernismo português, a propósito do que mostra fotografias dos cafés em que se encontravam e que já não existem (e mostra o que hoje está no seu lugar), salvo o famoso "Majestic", em que reconstitui na actualidade a sua presença solitária, sentado a escrever a uma mesa (numa possível alusão ao conhecido quadro de Almada Negreiros sobre Fernando Pessoa, duas figuras centrais do nosso primeiro modernismo, no não menos famoso mas lisboeta "Martinho da Arcada"). Da mesma maneira, vai às origens do cinema no Porto, ao mostrar fotografias da primeira sala de cinema da cidade, o Salão High-Life, também desaparecido, e mostra, esperançoso, o actual edifício do Batalha.
      Tudo posto e tudo exposto neste "Porto da minha infância", feito com outras cumplicidades e amizades a nível de actores, quer os da sua família, Jorge Trepa e Ricardo Trepa, quer os da sua família cinematográfica, Maria de Medeiros, Leonor Silveira, Rogério Samora, José Wallenstein, António Fonseca, Leonor Baldaque e o sempre indispensável Duarte de Almeida/João Bénard da Costa, temos este filme como obra perfeita e acabada, que aparentemente ajudaria a melhor compreender a obra do autor se não fosse, ele próprio, parte dela, o que torna as coisas simultaneamente mais simples e mais complicadas, fascinantes como sempre em Manoel de Oliveira, que tenderia a qualificar como o Poeta, sem prejuízo do Arquitecto que lhe chamou Paulo Rocha no filme que lhe dedicou (1993).

Dezembro 2006

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