Manoel de Oliveira, que já tinha
filmado, em 1982, "Lisboa Cultural" e que recorrentemente, ao longo
da sua obra, filmou o Porto, sua cidade-natal, por exemplo em "Douro, Faina Fluvial", o seu filme de estreia (1931), e "O Pintor e a Cidade" (1956), para além de nele ter situado alguns dos seus filmes de
ficção, dedica-lhe agora o seu mais recente filme documentário, "Porto da Minha Infância", feito para o Porto 2001 - Capital Europeia de Cultura.
Serve este preâmbulo para dizer que
nem o Porto é uma presença acidental nos filmes de Oliveira nem ele é propriamente
um documentarista amador.
Um filme como este, feito para a
mão esquerda mas dirigido com a mão direita e narrado a várias vozes, a dele
próprio, a de sua mulher, Maria Isabel, a de Agustina Bessa-Luís, dá-nos conta
da inspiração do autor no seu melhor, que nele usa um tom confessional que
talvez só tenha paralelo na sua obra em "As Pinturas do Meu Irmão
Júlio" (1965), em
que José Régio fala sobre os quadros do seu próprio irmão,
Júlio dos Reis Pereira/Saúl Dias (para além, obviamente, de "A Visita ou
Memórias e Confissões", de 1982, que confiou à Cinemateca Portuguesa para
que seja mostrado e visto só após a sua morte). Documentarista não acidental,
Oliveira agarra agora na sua própria memória do Porto da sua infância, que para
nós recorda através da palavra, através de filmes, seus e de outros, através de
reconstituições. Mas ao recordar o Porto recorda-se a si próprio como parte da
cidade, i. e., recorda a inata presença da cidade em si próprio.
O
filme tem, neste quadro, aspectos notáveis. Por um lado, a viva e pessoal
recordação da cidade e do seu tempo, para o que o cineasta se serve da sua
própria voz em off. A
esse nível nada poupa e nada esconde da sua vida pessoal, quando criança,
quando jovem e quando adulto, desde os acontecimentos filmados a que ele
assistiu, e mostra excertos do filme; o seu primeiro beijo infantil, e mostra
Carlitos e Teresinha no seu "Aniki-Bobó" (1942); a sua iniciação como
espectador de teatro, e representa uma cena da opereta "Miss Diabo",
que ele próprio interpreta com Maria de Medeiros; as suas noites de boémia que
reconstitui com fidelidade, imaginação e humor que não escondem a saudade.
Socorre-se ainda de "Europa, sonho do futuro", de Adolfo Casais
Monteiro, que o próprio poeta disse aos microfones da BBC durante a II Guerra Mundial; socorre-se de "Ai há quantos anos", de Guerra Junqueiro, que
põe na voz-off encantatória de sua mulher; da sua antiga amiga e
cúmplice Agustina Bessa-Luís, que filma enquanto lê um texto seu (e é
importante que o tenha feito para que num filme dele ela fique registada em
pessoa e voz); e da sua própria memória de um filme acalentado e
nunca concretizado dos anos 30, "Os Gigantes do Douro". Por outro lado,
a apresentação de documentos da época sobre a casa onde nasceu e onde seu pai
morreu (fotografia), sobre a cidade (filmes e reconstituições), sobre o rio
Douro, o rio que corre na sua aldeia, de que mostra excertos de "Douro,
Faina fluvial" e de "Aniki-Bobó", imagens fílmicas não
identificadas e as que filma na actualidade, designadamente no soberbo final, de
inspiração poética, do encontro do rio e do mar com a terra, que replica quer o
seu filme inicial quer o início musical deste seu filme - para além da
apresentação, fundamental, daquele que é considerado o primeiro filme português,
"A Saída das Costureiras da Camisaria Confiança", do grande pioneiro
Aurélio Paz dos Reis, que replica com a sua própria encenação da saída dos
operários das obras do Porto 2001 - tornam este um filme completo e mais que perfeito.
Ora
o filme é tanto mais admirável quanto Manoel de Oliveira não se coíbe de evocar
o seu grupo cultural da juventude, de que faziam parte homens ligados à revista Presença, que esteve na origem do que ficou conhecido por segundo modernismo português, a propósito do
que mostra fotografias dos cafés em que se encontravam e que já não existem (e
mostra o que hoje está no seu lugar), salvo o famoso "Majestic", em
que reconstitui na actualidade a sua presença solitária, sentado a escrever a
uma mesa (numa possível alusão ao conhecido quadro de Almada Negreiros sobre
Fernando Pessoa, duas figuras centrais do nosso primeiro modernismo, no não
menos famoso mas lisboeta "Martinho da Arcada"). Da mesma maneira,
vai às origens do cinema no Porto, ao mostrar fotografias da primeira sala de
cinema da cidade, o Salão High-Life, também desaparecido, e mostra, esperançoso,
o actual edifício do Batalha.
Tudo
posto e tudo exposto neste "Porto da minha infância", feito com
outras cumplicidades e amizades a nível de actores, quer os da sua família,
Jorge Trepa e Ricardo Trepa, quer os da sua família cinematográfica, Maria de
Medeiros, Leonor Silveira, Rogério Samora, José Wallenstein, António Fonseca,
Leonor Baldaque e o sempre indispensável Duarte de Almeida/João Bénard da
Costa, temos este filme como obra perfeita e acabada, que aparentemente
ajudaria a melhor compreender a obra do autor se não fosse, ele próprio, parte
dela, o que torna as coisas simultaneamente mais simples e mais complicadas,
fascinantes como sempre em Manoel de Oliveira, que tenderia a qualificar como o
Poeta, sem prejuízo do Arquitecto que lhe chamou Paulo Rocha no filme que lhe
dedicou (1993).
Dezembro 2006
Dezembro 2006
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