Trabalhando nos
moldes em que passámos a reconhecê-lo desde “Traffic - Ninguém Sai Ileso"/Traffic" (2000), "Vidas a Nu"/“Full Frontal”
e “Solaris” (2002), Steven Soderbergh dá-nos em “O Bom Alemão”/”The Good
German” (2006) uma cativante obra pessoal, que lhe dará ou não bons
resultados de bilheteira, mas se percebe que, como os citados filmes
anteriores, lhe deu muito especial gosto fabricar.
Com base numa carreira neste momento
já vasta e diversificada, o cineasta consegue alternar filmes mais pessoais com
outros mais comerciais sem grandes problemas, estabelecendo assim o tipo de
compromisso com os estúdios que, como actores, Orson Welles ou John Cassavetes
estabeleceram para poderem permitir-se dirigir os filmes que dirigiram. E esse compromisso
estabelece-o ele com tanto maior facilidade quanto os “Ocean’s Eleven” (2001), “Ocean’s Twelve” (2004) e o que agora se anuncia
são impecavelmente fabricados de acordo com as regras de Hollywood, e quanto a
sua actividade se diversificou, tendo-se tornado também produtor.
Esta chamada de
atenção preambular justifica-se tendo em conta o tipo de objecto
cinematográfico que “O Bom Alemão” é, com a sua temática de “filme negro”
situada na Alemanha do imediato pós-guerra, com a sua fotografia a preto e
branco e com uma definição visual que remete para o cinema americano dos anos
40 do século passado, embora com um tratamento muito especial da luz.
Visualmente, e tirando também partido do aproveitamento de imagens da época, o
filme oferece substanciais motivos de interesse, que se aliam à definição das
personagens de modo que torna secundário o perfeito encaixe lógico da sequência
narrativa.
Jake Geismer/George Clooney é um
oficial americano encarregado de uma missão, a de fazer passar para o lado
americano, sem deixar vestígios comprometedores, um cientísta nuclear.
Simplesmente, este é casado com uma antiga paixão sua, Lena/Cate Blanchett, o
que vem dar motivações especiais a Jake, lançado em arriscada missão a partir
de um contacto com um motorista, Tully/Toby Maguire, que desaparece a meio do
percurso. O que, pessoalmente, considero mais interessante neste filme, para
além do referido tratamento visual e da montagem, ambos da responsabilidade de
Soderbergh sob pseudónimo (como acontecera nos três citados filmes anteriores
quanto à fotografia e no terceiro quanto à montagem), é que o espírito da
narrativa se inscreve no género “filme negro” de uma maneira assaz feliz, que
passa por deixar o protagonista perante os limites da sua própria acção, não
apenas por virtude da acção das forças adversas, mas pela própria natureza das
coisas, neste caso das pessoas. Além disso, não deve esquecer-se que o clima
visual reforça o ambiente em que a acção do filme decorre, precisamente o do
início da Guerra Fria, e assim as referências visuais do filme não surgem por
acaso.
No seu todo, “O Bom Alemão” surge,
deste modo, perfeitamente coerente e conseguido, o que passa pelo trabalho de
composição quer de George Clooney quer de Cate Blanchett, ele mais do lado de
Humphrey Bogart, ela mais do lado de Marlène Dietrich, ambos em trabalhos de
grande precisão. Obviamente que o final do filme cita expressamente o célebre ”Casablanca”,
de Michael Curtiz (1942), e fá-lo de uma maneira não literal, o que lhe dá um sabor
todo outro, mas essa citação insere-se num filme repleto de referências, de
género cinematográfico e de época, o que a torna mais interessante e, ao mesmo
tempo, quiçá menos ao alcance da generalidade dos espectadores actuais. Outras
semelhanças, facilmente detectáveis, com “Chinatown”, de Roman Polanski (1974),
são não só pertinentes como dão perfeitamente conta do patamar fílmico em que
este filme deve ser situado.
Nome maior no cinema americano
actual, Steven Soderbergh é um cineasta que merece ser acompanhado filme a
filme, mas que me surge como evidentemente mais interessante nestes “pequenos
filmes” mais pessoais, em que se percebe que mais investe do seu talento de
criador cinematográfico, até porque neles está presente em maior número de
funções-chave da criação fílmica. Nessa linha se inscreve este “O Bom Alemão”
como obra de “primeira água”, numa obra que, olhada retrospectivamente, merece
o nosso maior apreço, embora dela não nos tenham chegado alguns filmes dos anos
90 do século XX.
Aliás, deve-se dizer que o fascínio
inequívoco que se desprende deste filme não está isento de ambiguidade, uma vez
que exige do espectador uma atitude de distanciamento cúmplice. Quero com isto
dizer que este filme citacional de Steven Soderbergh deve ser visto, para ser
plenamente entendido e degustado, com o mesmo sentido de diatanciamento que o
cineasta lhe conferiu, o que a época de que trata, o género que escolheu e o
tratamento visual e sonoro do filme acentua, e os actores ainda mais enfatizam
(o que, sublinhe-se, não sucedia com “Chinatown”).
Vale a pena conhecer este filme,
assim como vale a pena conhecer a obra anterior de Soderbergh e continuar a segui-lo no futuro.
Junho 2007
Junho 2007
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