Como se de propósito (há
coincidências felizes…), estrearam em Portugal os dois últimos filmes de Claude
Chabrol, “A Dama de Honor”/”La demoiselle d’honneur” (2004) e “A Comédia do Poder”/”L’ivresse
du pouvoir” (2005), para o primeiro dos quais o cineasta se inspirou num
romance de Ruth Rendell, à semelhança do que fizera já para “A Cerimónia”/”La cérémonie” (1995), e
para o segundo em factos reais.
Tenho
para mim que Chabrol, nos filmes em que se leva mais a sério, consegue por
regra atingir pontos de excepcional qualidade e profundidade, que o levam a
tocar questões humanas especialmente sensíveis. Por contraposição a esses
filmes e ao registo que implicam, que não dispensa nunca um toque de humor e
uma intenção crítica, o cineasta adopta noutros filmes um tom mais ligeiro, o
que não significa, por regra, menor inspiração cinematográfica, apenas o
acolhimento de uma inspiração diferente na história do cinema – por exemplo, o
tom lubitschiano de “Rien ne va plus” (1997). Tratar-se-á, no fundo, de
equilibrar, de calibrar uma obra que é já longa e se iniciou no final dos anos
50 do século XX, no contexto da “nouvelle vague” francesa.
Atingindo
em “A Dama de Honor” o seu melhor, porque mais concentrado, o cineasta
confronta-nos com uma narrativa de responsabilidades, de inocentes e
culpados, no limite de troca de crimes, o que releva de uma pura inspiração
hitchcockiana. Mas se Alfred Hitchcock sempre foi a face visível da inspiração
de Chabrol, o autor cinematográfico que, fora do aparato do “suspense”,
trabalha por dentro os melhores filmes dele é Fritz Lang. Não o Lang expressionista
apenas, o dos “Dr. Mabuse”(1922, 1933) e de "M"/“Matou” (1931), mas o Lang americano, de “Fúria”/”Fury” (1936) a
“A Verdade e o Medo”/”Beyound a Reasonable Doubt” (1956), isto é o cineasta
da dúvida, do pôr em causa a possibilidade de julgamento das suas personagens e
dos espectadores. O cineasta da Ética. Já assim fora numa das fases mais
interessantes da sua obra, com filmes como “Requiem para um Desconhecido”/”Que
la bête meure” e “O Carniceiro”/”Le boucher” (ambos de 1969), nomeadamente, e
volta a ser em “A Dama de Honor” e “A Comédia do Poder”, como fora em “A
Cerimónia”.
Não
porque as personagens de Claude Chabrol sejam inocentes, porque o não são, mas
o que precisamente está em causa nesses filmes, como noutros, é a raiz dos seus
crimes, da sua culpa, e a esse nível penso que a inspiração, fílmica e narrativa,
do autor continua a merecer a nossa melhor atenção porque está na origem de uma
temática e de uma estética, mas também de uma ética, próprias e extremamente
coerentes.
Tal
como em Hitchcock, o crime pode não passar do “whodonit”, o que interessa são
os percursos que a ele conduzem as personagens, com as suas características distintivas próprias. Os seus percursos exteriores e os seus percursos
interiores, como acontece em “Merci pour le chocolat” (2000) e em “La fleur du mal” (2003), ambos escandalosamente inéditos comercialmente entre
nós. E aí a grande arte deste veterano do cinema francês está em dar-nos o
interior a partir do exterior, a psicologia através do comportamento, sem facilitismos
e sem poupar nem as personagens nem os espectadores. A Claude Chabrol
interessa, em “A Dama de Honor”, a trama de relações que a normalidade de
comportamento num grupo humano esconde, entre pessoas que, aparentemente, não
têm nada que as separe e as faça assumir comportamentos fora da normalidade. Aí
o crime, no entanto, surge, e interessa mais saber quem foi o criminoso para
perceber quais as suas motivações, do que descobrir as motivações para, através
delas, chegar ao criminoso - embora isso também possa ser importante.
As questões éticas e também estéticas dos filmes de
Claude Chabrol podem mostrar-se incómodas nos tempos que correm, de “deixar
passar”, “deixar correr”, mas a pertinência do seu cinema advém precisamente
disso. De facto, nos seus filmes o autor joga
intransigentemente com as questões que lhe interessam, e não será certamente
dos seus méritos menores o de aliar uma inspiração fílmica e uma inspiração
temática que mutuamente se implicam – o seu trabalho fílmico, de um grande rigor
formal, revela um estilo próprio, que tem o mérito de permanecer.
“A Comédia do Poder” retoma o mesmo tipo de
questões com uma inspiração fílmica só na aparência mais ligeira.
O
que torna muito curioso e merecedor de atenção este filme é que o cineasta com
ele não alimenta as ilusões que ele próprio não tem. O poder de inquirir, de
investigar, de chegar à verdade depara com dificuldades levantadas, não só por
quem na descoberta da verdade não está interessado, mas também por parte de quem
na descoberta dela, verdade, deveria estar interessado, enquanto que aqueles
que são investigados beneficiam de uma teia de cumplicidades que faz com que,
mesmo se apanhados e incriminados uns, outros prossigam o “esquema” de outra
maneira. Tudo de uma forma perfeitamente tranquila, sem sobressaltos e quase
sem exteriorização das emoções, mesmo do ponto de vista fílmico, em que os
reenquadramentos funcionam quase mecanicamente.
No
final, uma já displicente e sempre um tanto diletante protagonista manda tudo e
todos “dar uma volta” (em francês - a legendagem portuguesa de todo o filme é
vergonhosa). As luvas que ela enverga com garridice são um achado visual muito
interessante e Isabelle Huppert está aqui de novo, e como sempre que trabalha
com Claude Chabrol, ao seu melhor nível: foram feitos um para o outro.
Como
em Fritz Lang,
é a possibilidade de julgamento que está em causa (“Os Carrascos Também Morrem”/”Hangmen Also Die”, 1943); como em Lang, é a possibilidade de
exercer um juízo livre e informado que é questionada ("A Verdade e o Medo"); como em Lang, são os limites sociais
e institucionais que constrangem quem investiga que são postos em causa
(“Corrupção”/”The Big Heat”, 1953). É por tudo isto que este filme mal amado
é um filme que é preciso ver e compreender, sem nos deixarmos desarmar pelo
epíteto de “clássico” com que se pretende diminuir Claude Chabrol. Ele é, de
facto, hoje em dia um “clássico” do cinema francês mas no melhor dos sentidos: o
de um cinema vivo, não adormecido pelas “balelas” televisivas nem pelo cinema
“vistoso” que hoje em dia domina. O que, num clima geral de “faz de conta”, que
alastra ao cinema, deve ser devidamente sublinhado e estimado.
Como
escreve Gilles Deleuze em “A imagem-tempo”, actualmente disponível em
português, em Lang como em Brecht, "o julgamento já não pode exercer-se directamente na imagem,
mas passa para o lado do espectador" - ao contrário de Orson Welles, em que "o sistema de julgamento se torna definitivamente impossível, mesmo e sobretudo para o espectador". Aí o cineasta alemão
radicou uma ética intransigente, que Claude Chabrol tem sabido prosseguir e
prolongar, sobre ela reflectindo de forma por vezes particularmente feliz, como
acontece em “A Dama de Honor” e, especialmente, em “A Comédia do Poder”.
Num
registo tematicamente semelhante, embora com todas as diferenças tanto
narrativas como estéticas, move-se “Nada a Esconder”/”Caché”, de Michael
Haneke (2005), cineasta austríaco que desde “Brincadeiras Perigosas”/”Funny Games” (1996) vem despertando reacções diversas, mas a cujos filmes não se pode ficar
indiferente.
Filmando em França, como tem feito desde “Código Desconhecido”/”Code inconnu” (2000), Haneke segue um percurso paralelo ao de Claude Chabrol quanto à natureza das suas personagens e das problemáticas respectivas, mas o seu tom é mais apocalíptico, mais de acordo, expressamente, com um tempo como o nosso, de dúvida, de incerteza, de solidão e de vazio. Tenho a ideia de que ele consegue captar neste seu mais recente filme alguma coisa que atravessa transversalmente as sociedades pós-industriais em que vivemos, com os sofrimentos e dilemas íntimos daqueles que nelas vivem, com a sua necessidade urgente de certezas e o seu persistente desembocar na inquietação e no vazio. Talvez por isso mesmo, e por trabalhar essa questão com grande persistência e grande rigor, fílmico e ético, Michael Haneke seja um dos mais importantes cineastas europeus da actualidade.
Filmando em França, como tem feito desde “Código Desconhecido”/”Code inconnu” (2000), Haneke segue um percurso paralelo ao de Claude Chabrol quanto à natureza das suas personagens e das problemáticas respectivas, mas o seu tom é mais apocalíptico, mais de acordo, expressamente, com um tempo como o nosso, de dúvida, de incerteza, de solidão e de vazio. Tenho a ideia de que ele consegue captar neste seu mais recente filme alguma coisa que atravessa transversalmente as sociedades pós-industriais em que vivemos, com os sofrimentos e dilemas íntimos daqueles que nelas vivem, com a sua necessidade urgente de certezas e o seu persistente desembocar na inquietação e no vazio. Talvez por isso mesmo, e por trabalhar essa questão com grande persistência e grande rigor, fílmico e ético, Michael Haneke seja um dos mais importantes cineastas europeus da actualidade.
Ele
mostra-se, desde logo, pós-moderno ao utilizar o
dispositivo videográfico no interior do dispositivo fílmico, como vem fazendo
desde “Benny’s Video” (1992) e do já citado “Brincadeiras Proibidas”, com a
singularidade de em “Nada a Esconder” estabelecer a dúvida e a confusão entre o
vídeo filmado no interior do filme e o próprio filme. Dúvida essa que é acompanhada
pela que se refere à identidade do autor dos vídeos e cartas anónimas, questão relativamente
à qual somos deixados no filnal do filme em plena incerteza.
Com base num dispositivo minimal, numa narrativa simples que não dispensa,
porém, os seus nós de maior complexidade, Michael Haneke consegue, sem
estardalhaço nem o grande terror colectivo do seu filme anterior, “A Hora do
Lobo”/”Le temps du loup” (2003), levar-nos ao coração do drama, ou pelo menos
de um dos dramas das sociedades contemporâneas, que o é simultaneamente da
pós-modernidade, a saber: tentar
viver sem memória, nem individual nem colectiva. Claro que esta atitude de uma
cómoda “amnésia” pode dar os seus frutos e permite, em especial no cinema,
ocasionais “colheitas” apreciáveis, nomeadamente de bilheteira: só pensar no
presente e no futuro (e mesmo assim…), no aqui e agora e, se possível, no dia
de amanhã.
É
perante uma atitude deste tipo que o cineasta austríaco nos coloca neste filme,
construindo-o dramática e esteticamente sobre a ameaça desse presente asséptico,
que faz despertar o escondido, o recalcado, o não-dito, sob a forma de vingança. A dúvida que é feita
despertar sobre Georges Laurent/Daniel Auteil, e que atinge a sua mulher,
Anne/Juliette Binoche por ricochete, vem perturbar gravemente uma vida anteriormente
sem sobressaltos. Como em “Código Desconhecido”, no final somos deixados
perante o vazio, a ausência de explicação clara, como o protagonista com uma vaga
sensação de absurdo.
A
ética de Haneke poderá ser diferente da de Chabrol, embora aquele partilhe com
este um lado de entomólogo que, desde Luis Buñuel, pelo menos, nos tem dado
alguns dos melhores filmes da história do cinema. Filmes da incerteza, da
dúvida, mas também do pulsional, do mais insidiosamente gerado no coração da
tranquilidade estabelecida. Neste panorama, e à semelhança de “Código Desconhecido”, este “Nada a Esconder” singulariza-se pela ausência de
explicação clara, racional – à semelhança de “O Anjo Exterminador”/"El Ángel Exterminador", de Buñuel (1962), e de “Os Pássaros”/"The Birds", de Hitchcock (1963). Dito o que não deixo dúvidas
sobre o apreço em que tenho o cineasta. E à semelhança de “A Pianista”/"La pianiste" (2001), o filme mais célebre e mais amado de Haneke até à data, que pode ganhar
um novo interesse e um novo mistério à luz do mais recente trabalho do seu
autor. Mas valerá a pena recordar que o cineasta fez em 1997 "O Castelo"/"Das Schloss", baseado no romance de Franz Kafka.
Ao falarmos nos filmes de Haneke, de Buñuel e de Hitchcock estamos a falar do que, não inocente, muda no movimento, mesmo que seja o movimento do mundo, mesmo se inexplicável. O oposto da inocência do devir em Falstaff e no Quixote de Orson Welles, de que fala Gilles Deleuze em "A imagem-tempo". A diferença
residirá em que, em Chabrol como em Lang, falar de ética é falar do que
permanece, do que não muda mas pode ser pensado.
Dezembro 2006
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