“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Isto é importante

       Como se de propósito (há coincidências felizes…), estrearam em Portugal os dois últimos filmes de Claude Chabrol, “A Dama de Honor”/”La demoiselle d’honneur” (2004) e “A Comédia do Poder”/”L’ivresse du pouvoir” (2005), para o primeiro dos quais o cineasta se inspirou num romance de Ruth Rendell, à semelhança do que fizera já para “A Cerimónia”/”La cérémonie” (1995), e para o segundo em factos reais.
        Tenho para mim que Chabrol, nos filmes em que se leva mais a sério, consegue por regra atingir pontos de excepcional qualidade e profundidade, que o levam a tocar questões humanas especialmente sensíveis. Por contraposição a esses filmes e ao registo que implicam, que não dispensa nunca um toque de humor e uma intenção crítica, o cineasta adopta noutros filmes um tom mais ligeiro, o que não significa, por regra, menor inspiração cinematográfica, apenas o acolhimento de uma inspiração diferente na história do cinema – por exemplo, o tom lubitschiano de “Rien ne va plus” (1997). Tratar-se-á, no fundo, de equilibrar, de calibrar uma obra que é já longa e se iniciou no final dos anos 50 do século XX, no contexto da “nouvelle vague” francesa.
       Atingindo em “A Dama de Honor” o seu melhor, porque mais concentrado, o cineasta confronta-nos com uma narrativa de responsabilidades, de inocentes e culpados, no limite de troca de crimes, o que releva de uma pura inspiração hitchcockiana. Mas se Alfred Hitchcock sempre foi a face visível da inspiração de Chabrol, o autor cinematográfico que, fora do aparato do “suspense”, trabalha por dentro os melhores filmes dele é Fritz Lang. Não o Lang expressionista apenas, o dos “Dr. Mabuse”(1922, 1933) e de "M"/“Matou” (1931), mas o Lang americano, de “Fúria”/”Fury” (1936) a “A Verdade e o Medo”/”Beyound a Reasonable Doubt” (1956), isto é o cineasta da dúvida, do pôr em causa a possibilidade de julgamento das suas personagens e dos espectadores. O cineasta da Ética. Já assim fora numa das fases mais interessantes da sua obra, com filmes como “Requiem para um Desconhecido”/”Que la bête meure” e “O Carniceiro”/”Le boucher” (ambos de 1969), nomeadamente, e volta a ser em “A Dama de Honor” e “A Comédia do Poder”, como fora em “A Cerimónia”.
                                 
        Não porque as personagens de Claude Chabrol sejam inocentes, porque o não são, mas o que precisamente está em causa nesses filmes, como noutros, é a raiz dos seus crimes, da sua culpa, e a esse nível penso que a inspiração, fílmica e narrativa, do autor continua a merecer a nossa melhor atenção porque está na origem de uma temática e de uma estética, mas também de uma ética, próprias e extremamente coerentes.
        Tal como em Hitchcock, o crime pode não passar do “whodonit”, o que interessa são os percursos que a ele conduzem as personagens, com as suas características distintivas próprias. Os seus percursos exteriores e os seus percursos interiores, como acontece em “Merci pour le chocolat” (2000) e em “La fleur du mal” (2003), ambos escandalosamente inéditos comercialmente entre nós. E aí a grande arte deste veterano do cinema francês está em dar-nos o interior a partir do exterior, a psicologia através do comportamento, sem facilitismos e sem poupar nem as personagens nem os espectadores. A Claude Chabrol interessa, em “A Dama de Honor”, a trama de relações que a normalidade de comportamento num grupo humano esconde, entre pessoas que, aparentemente, não têm nada que as separe e as faça assumir comportamentos fora da normalidade. Aí o crime, no entanto, surge, e interessa mais saber quem foi o criminoso para perceber quais as suas motivações, do que descobrir as motivações para, através delas, chegar ao criminoso - embora isso também possa ser importante.
        As questões éticas e também estéticas dos filmes de Claude Chabrol podem mostrar-se incómodas nos tempos que correm, de “deixar passar”, “deixar correr”, mas a pertinência do seu cinema advém precisamente disso. De facto, nos seus filmes o autor joga intransigentemente com as questões que lhe interessam, e não será certamente dos seus méritos menores o de aliar uma inspiração fílmica e uma inspiração temática que mutuamente se implicam – o seu trabalho fílmico, de um grande rigor formal, revela um estilo próprio, que tem o mérito de permanecer.
         “A Comédia do Poder” retoma o mesmo tipo de questões com uma inspiração fílmica só na aparência mais ligeira.
                             
         Ao tratar de um assunto que se baseia num célebre caso de corrupção e tráfico de influências na França dos anos noventa, Chabrol inspira-se em factos verídicos e públicos para ficcionar livremente o que a esse nível lhe interessa: o poder ilimitado do lado do crime, os limites da possibilidade de julgamento por parte da juíza que tem a seu cargo a investigação. De facto, Jeanne Charmant-Killman/Isabelle Huppert mostra estar perfeitamente à altura do processo que lhe foi confiado e chega mesmo a receber um apoio que poderá ajudá-la no cumprimento da sua missão. Mas dada a amplitude do caso e o escândalo que o envolve, é dentro da própria instituição a que pertence que lhe são criadas dificuldades e levantados obstáculos (mesmo sob a aparência de apoios), e tem que ser no quadro das relações com aqueles que lhe são mais próximos, o que não é fácil, que ela tem que prosseguir – todo o lado das relações familiares da protagonista está muito bem dado.
            O que torna muito curioso e merecedor de atenção este filme é que o cineasta com ele não alimenta as ilusões que ele próprio não tem. O poder de inquirir, de investigar, de chegar à verdade depara com dificuldades levantadas, não só por quem na descoberta da verdade não está interessado, mas também por parte de quem na descoberta dela, verdade, deveria estar interessado, enquanto que aqueles que são investigados beneficiam de uma teia de cumplicidades que faz com que, mesmo se apanhados e incriminados uns, outros prossigam o “esquema” de outra maneira. Tudo de uma forma perfeitamente tranquila, sem sobressaltos e quase sem exteriorização das emoções, mesmo do ponto de vista fílmico, em que os reenquadramentos funcionam quase mecanicamente.
            No final, uma já displicente e sempre um tanto diletante protagonista manda tudo e todos “dar uma volta” (em francês - a legendagem portuguesa de todo o filme é vergonhosa). As luvas que ela enverga com garridice são um achado visual muito interessante e Isabelle Huppert está aqui de novo, e como sempre que trabalha com Claude Chabrol, ao seu melhor nível: foram feitos um para o outro.
            Como em Fritz Lang, é a possibilidade de julgamento que está em causa (“Os Carrascos Também Morrem”/”Hangmen Also Die”, 1943); como em Lang, é a possibilidade de exercer um juízo livre e informado que é questionada ("A Verdade e o Medo"); como em Lang, são os limites sociais e institucionais que constrangem quem investiga que são postos em causa (“Corrupção”/”The Big Heat”, 1953). É por tudo isto que este filme mal amado é um filme que é preciso ver e compreender, sem nos deixarmos desarmar pelo epíteto de “clássico” com que se pretende diminuir Claude Chabrol. Ele é, de facto, hoje em dia um “clássico” do cinema francês mas no melhor dos sentidos: o de um cinema vivo, não adormecido pelas “balelas” televisivas nem pelo cinema “vistoso” que hoje em dia domina. O que, num clima geral de “faz de conta”, que alastra ao cinema, deve ser devidamente sublinhado e estimado.
          Como escreve Gilles Deleuze em “A imagem-tempo”, actualmente disponível em português, em Lang como em Brecht, "o julgamento já não pode exercer-se directamente na imagem, mas passa para o lado do espectador" - ao contrário de Orson Welles, em que "o sistema de julgamento se torna definitivamente impossível, mesmo e sobretudo para o espectador". Aí o cineasta alemão radicou uma ética intransigente, que Claude Chabrol tem sabido prosseguir e prolongar, sobre ela reflectindo de forma por vezes particularmente feliz, como acontece em “A Dama de Honor” e, especialmente, em “A Comédia do Poder”.
         Num registo tematicamente semelhante, embora com todas as diferenças tanto narrativas como estéticas, move-se “Nada a Esconder”/”Caché”, de Michael Haneke (2005), cineasta austríaco que desde “Brincadeiras Perigosas”/”Funny Games” (1996) vem despertando reacções diversas, mas a cujos filmes não se pode ficar indiferente.
                                   
          Filmando em França, como tem feito desde “Código Desconhecido”/”Code inconnu” (2000), Haneke segue um percurso paralelo ao de Claude Chabrol quanto à natureza das suas personagens e das problemáticas respectivas, mas o seu tom é mais apocalíptico, mais de acordo, expressamente, com um tempo como o nosso, de dúvida, de incerteza, de solidão e de vazio. Tenho a ideia de que ele consegue captar neste seu mais recente filme alguma coisa que atravessa transversalmente as sociedades pós-industriais em que vivemos, com os sofrimentos e dilemas íntimos daqueles que nelas vivem, com a sua necessidade urgente de certezas e o seu persistente desembocar na inquietação e no vazio. Talvez por isso mesmo, e por trabalhar essa questão com grande persistência e grande rigor, fílmico e ético, Michael Haneke seja um dos mais importantes cineastas europeus da actualidade.
        Ele mostra-se, desde logo, pós-moderno ao utilizar o dispositivo videográfico no interior do dispositivo fílmico, como vem fazendo desde “Benny’s Video” (1992) e do já citado “Brincadeiras Proibidas”, com a singularidade de em “Nada a Esconder” estabelecer a dúvida e a confusão entre o vídeo filmado no interior do filme e o próprio filme. Dúvida essa que é acompanhada pela que se refere à identidade do autor dos vídeos e cartas anónimas, questão relativamente à qual somos deixados no filnal do filme em plena incerteza.
         Com base num dispositivo minimal, numa narrativa simples que não dispensa, porém, os seus nós de maior complexidade, Michael Haneke consegue, sem estardalhaço nem o grande terror colectivo do seu filme anterior, “A Hora do Lobo”/”Le temps du loup” (2003), levar-nos ao coração do drama, ou pelo menos de um dos dramas das sociedades contemporâneas, que o é simultaneamente da pós-modernidade, a saber: tentar viver sem memória, nem individual nem colectiva. Claro que esta atitude de uma cómoda “amnésia” pode dar os seus frutos e permite, em especial no cinema, ocasionais “colheitas” apreciáveis, nomeadamente de bilheteira: só pensar no presente e no futuro (e mesmo assim…), no aqui e agora e, se possível, no dia de amanhã.
       É perante uma atitude deste tipo que o cineasta austríaco nos coloca neste filme, construindo-o dramática e esteticamente sobre a ameaça desse presente asséptico, que faz despertar o escondido, o recalcado, o não-dito, sob a forma de vingança. A dúvida que é feita despertar sobre Georges Laurent/Daniel Auteil, e que atinge a sua mulher, Anne/Juliette Binoche por ricochete, vem perturbar gravemente uma vida anteriormente sem sobressaltos. Como em “Código Desconhecido”, no final somos deixados perante o vazio, a ausência de explicação clara, como o protagonista com uma vaga sensação de absurdo.
           A ética de Haneke poderá ser diferente da de Chabrol, embora aquele partilhe com este um lado de entomólogo que, desde Luis Buñuel, pelo menos, nos tem dado alguns dos melhores filmes da história do cinema. Filmes da incerteza, da dúvida, mas também do pulsional, do mais insidiosamente gerado no coração da tranquilidade estabelecida. Neste panorama, e à semelhança de “Código Desconhecido”, este “Nada a Esconder” singulariza-se pela ausência de explicação clara, racional – à semelhança de “O Anjo Exterminador”/"El Ángel Exterminador", de Buñuel (1962), e de “Os Pássaros”/"The Birds", de Hitchcock  (1963). Dito o que não deixo dúvidas sobre o apreço em que tenho o cineasta. E à semelhança de “A Pianista”/"La pianiste" (2001), o filme mais célebre e mais amado de Haneke até à data, que pode ganhar um novo interesse e um novo mistério à luz do mais recente trabalho do seu autor. Mas valerá a pena recordar que o cineasta fez em 1997 "O Castelo"/"Das Schloss", baseado no romance de Franz Kafka.
            Ao falarmos nos filmes de Haneke, de Buñuel e de Hitchcock estamos a falar do que, não inocente, muda no movimento, mesmo que seja o movimento do mundo, mesmo se inexplicável. O oposto da inocência do devir em Falstaff e no Quixote de Orson Welles, de que fala Gilles Deleuze em "A imagem-tempo". A diferença residirá em que, em Chabrol como em Lang, falar de ética é falar do que permanece, do que não muda mas pode ser pensado.

Dezembro 2006

Sem comentários:

Enviar um comentário