Com “Espelho Mágico” (2005), Manoel de Oliveira prossegue a sua obra imparável de uma forma
superlativa. Baseando-se de novo em romance de Agustina Bessa-Luís, desta feita
o segundo volume de “O Princípio da Incerteza” (trilogia da qual o primeiro
volume, “Jóia de Família”, tinha sido já objecto de um filme anterior dele,
precisamente com o título da própria trilogia), intitulado “A Alma dos Ricos”,
o realizador mais importante do cinema português constrói, como sempre, obra
pessoal, com o rigor e a austeridade que lhe conhecemos, mas também com uma
ironia que lhe é igualmente peculiar.
Mais que qualquer outro filme
recente seu, este o filme de Oliveira que mais me faz pensar em “O Passado e o
Presente” (1971), o filme que lança a segunda fase da obra dele, com o seu jogo
de duplos (aqui de espelhos), com a sua acerada visão crítica no que poderia
ser uma via renoiriana dessa obra mas acaba por ser, aí como aqui, uma via
iberista através da proximidade com Luis Buñuel. Eu explico-me, embora seja
fácil entender o que quero dizer, uma vez que, no momento em que escrevo,
Oliveira já terá concluído o seu filme seguinte, “Belle Toujours”, no qual
prolonga o mítico “Belle de Jour” do mítico cineasta espanhol.
Se há filme em que o mestre português
trata essa singular conflitualidade latente entre os humanos, sempre pronta a
despertar quando o motivo pulsional impera, esse filme é, depois de “A Caça” (1964), o
referido “O Passado e o Presente”, em que o conflito surge também sob a forma de
duplos, ou gémeos. Sempre considerei este filme muito importante, porque penso
que ele estabelece uma certa regra de um certo jogo na obra do autor.
Simplesmente, essa veia de inspiração reaparece posteriormante de forma
desgarrada em filmes como “Os Canibais” (1988), “A Caixa” (1994), “Party” (1996), o mencionado “O
Princípio da Incerteza” (2002) e agora neste “Espelho Mágico”.
Mas devemos ter presente, nesta original aproximação entre o maior cineasta português e o maior cineasta
espanhol, que Manoel de Oliveira continua a ser retintamente português, embora
um português que sabe o que é o cinema e estabelece uma rede, uma teia cúmplice
com o melhor do cinema espanhol.
Não me parece que a implacável
crítica dos tabus religiosos seja o que mais interessa ao autor de “Acto da
Primavera” (1963), mas se há filme seu em que ele por aí anda é precisamente este “Espelho
Mágico”, em que o sagrado é dessacralizado apesar de se manter toda a sua carga simbólica, o que em Buñuel também acontecia, mas de outra maneira. De facto, aqui Alfreda/Leonor
Silveira assume uma religiosidade familiar através das duplicações especulares,
o que a leva a ultrapassar, integrando-as, todas as “tromperies” dos outros – e,
no entanto, através daquilo a que Gilles Deleuze chama, em Buñuel, “as pulsões
da alma”. Se, dessa maneira, ela passa para “o outro lado do espelho” por
intermédio dos laços de género que mantém será outra questão, precisamente a questão que dá ao filme a sua peculiar
marca de autor, para além de todos os motivos fílmicos formais aqui presentes.
Se bem me faço entender, este é o
filme em que melhor Manoel de Oliveira revela e demostra uma fundamental
cumplicidade feminina a que os homens, mesmo os mais próximos, mesmo os mais
compreensivos não têm acesso. Este filme é, assim, muito mais do que aquilo que as
belas imagens dele podem mostrar, muito mais do que as palavras desencontradas
dele podem sugerir, porque é o mais radicalmente baseado no mistério do
feminino de todos os filmes do autor até agora. Pura genialidade dele (e de
Agustina). Celsa/Isabel Ruth lá está para o confirmar.
Seja-me permitido agarrar nesta
actriz para estabelecer a passagem para o mais recente filme de Paulo Rocha,
“Vanitas ou O Outro Mundo” (2004), cineasta que é o mais próximo continuador de Oliveira, como
ele natural do Porto.
Paulo Rocha foi o criador
cinematográfico da criatura fílmica Isabel Ruth com um dos filmes fundadores do
“novo cinema português” dos anos sessenta do século XX, “Os Verdes Anos”, de 1963. A ela tem regressado
de vez em quando, como acontece em “O Rio do Ouro” (1998), mas é neste filme que, depois
do irregular “A Raiz do Coração” (2000), o cineasta repega na criatura para dela fazer
o centro de um filme. Para tal regressa ao Porto e constrói uma narrativa
aparentemente fútil, com argumento de Regina Guimarães, em que sobre a vaidade
do título reflecte a respeito de Nela Calheiros/Isabel Ruth e do meio da moda em que ela se move, daqueles que com ela convivem.
Se um colar circula no filme e
este se centra em fundamentais mortes de mulheres, esse colar simboliza
o que delas permanece para além da morte, o que conserva o rasto delas para
sempre, mesmo depois de elas terem passado para o outro lado. Sempre presas do
efémero, os homens deixam-se seduzir pelas aparências, pelos toques femininos,
como é bom que suceda, mas elas, as mulheres, sabem que, se tudo começou com
elas, elas próprias também acabam, à semelhança do que acontece com qualquer
transitório homem.
Centrado na morte, e na morte da
mulher, o último filme de Paulo Rocha vai, assim, ao encontro do seu primeiro,
embora com uma carga sexual muito mais forte e clara. Só que aqui o cineasta
transcende-se ao transcender as meras aparências (à semelhança de Manoel de
Oliveira em “Espelho Mágico”), e se nos dá da mulher a mortalidade e a
permanência dá-nos do homem o labirinto, à semelhança, também neste aspecto, de
“Os Verdes Anos” – e até, para maior clareza, a filha, neste caso Mila/Joana
Bárcia, torna-se adoptiva.
Não sei quanto tempo este filme esteve
em cartaz, creio que pouco, o que está de acordo com os tempos festivos que
permanentemente vivemos, também no cinema. Não sei, no entanto, de filme mais
fundamente verdadeiro e comovedor em todo o cinema português recente que este
“Vanitas”, que nos arrasta para além das aparências para nos deixar perante os
próprios mistérios da vida e da morte. O que acontece, precisamente, por ser um
filme inteiramente pessoal, em que Paulo
Rocha não se limita a “debitar” cinema para gerir uma
carreira, mas se entrega, desta vez sim, até à raiz do coração. Curiosamente,
será também este “Vanitas” o filme em que Rocha se mostra mais próximo do lado
pulsional português da obra de Oliveira, o do lado renoiriano, neste caso sim,
dela, porque nele se explana o "grande teatro português", com as suas regras e os
seus jogos.
Além disso, será de chamar a atenção
para o facto de o cineasta aqui integrar imagens da Noite de S. João provenientes do seu documetário “As Sereias” (2001),
que assim são utilizadas num outro filme, este de ficção, passado no Porto, que se inicia numa Noite de Finados.
Mas quais regras
e quais jogos, perguntar-se-á quem me ler. São universais e, em termos de meta-cinema
são assim: de pai João Bénard, em Oliveira, em filho João Pedro
Bénard, em Rocha, todos caímos, julgamos perceber e acabamos sempre nas trevas;
de John Cassavetes, contracenando com Gena Rowlands através de Ben Gazzara, a
François Truffaut, contracenando com Fanny Ardent através de Bob Hoskins, em
“Paris, je t’aime” (2006), continuamos presentes, e enquanto, como no final desse
filme, tivermos o campo-contracampo entre Gena Rowlands e Juliette Binoche, com
Gazzara a confraternizar com Hoskins, continuaremos a cair também no cinema
deles (Cassavetes, Truffaut, Depardieu – certamente -, ou outros) e delas (Gena,
Fanny, Juliette ou outras). Isto digo eu.
Março 2007
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