“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Fantasmagorias

       Com "Fantasmas de Marte, de John Carpenter"/"John Carpenter's Ghosts of Mars" (2001), o famoso, embora não especialmente amado no seu país, cineasta americano dá continuidade a uma obra notável, de que o filme precedente tinha sido "Vampiros de John Carpenter"/"John Carpenter's Vampires" (1998).
      Comecemos precisamente pelos títulos destes dois últimos filmes. Como noutros casos de inclusão do nome do autor, literário ou cinematográfico, nos títulos dos filmes, John Carpenter como que apõe a sua assinatura nos seus filmes, o que dá conta de um estatuto autoral consciente e plenamente assumido. E convenhamos que não se pode ignorar hoje em dia que ele é um dos indiscutíveis nomes de maior relevo do cinema do seu país, de tal modo possuidor de uma temática e de um estilo próprios que será difícil não reconhecer um filme seu como obra sua, no exercício de uma liberdade criativa intransigentemente assumida e reivindicada, que algum reconhecimento lhe tem valido, finalmente, no seu próprio país.
      Ora em "Fantasmas de Marte, de John Carpenter" ele volta a um método que lhe tem sido frequente, que é o de não utilizar vedetas do cinema para os principais papéis, para os quais escolhe actores pouco conhecidos, no entanto perfeitamente adequados às personagens que lhes cabem. Aqui só Ice Cube, no papel de James Desolation Williams, tem estatuto de vedeta, apesar de interpretar uma personagem à partida pouco simpática, a de um preso que há que transportar, o que é, aliás, uma figura recorrente tanto do western como do filme policial. A diferença está em que estamos em Marte e não na Terra, em 2176 e não na actualidade.
                      
       Destes "pequenos" desfasamentos o cineasta tira o melhor partido, tornando a paisagem de Marte particularmente agreste e os métodos utilizados contra a força comandada pela Tenente Melanie Ballard/Natasha Henstridge especialmente ameaçadores. Mas não apenas desses aspectos ele tira partido, uma vez que a estrutura do filme em flash-back se torna de utilização especialmente feliz, vertiginosa mesmo, quando nos é dado o flash-back dentro do flash-back e a consequente repetição do mesmo acontecimento, da mesma situação segundo a perspectiva de diferentes personagens.
      Se no anterior "Vampiros de John Carpenter" a estrutura era a de um western actualizado temática e temporalmente, aqui a estrutura é de filme de aventuras e de ficção científica sem rodeios, i. e., sem um particular recurso à manipulação de dados ou de conjecturas de carácter científico, o que, como se sabe, é de uso corrente no cinema americano do género. Pelo contrário, e como é seu hábito, o cineasta simplifica para se tornar mais claro e contundente, com o que o filme ganha uma dinâmica absolutamente notável de filme de acção, aliás sem perder traços de western, à semelhança e à altura do melhor que o autor nos tem dado, designadamente em "Nova Iorque 1997"/"Escape from New York" (1981), "Eles vivem!"/"They Live" (1988), e "Fuga de Los Angeles "/"Escape from L. A." (1996).
      É claro que, neste seu último filme, Carpenter regressa a um estilo de trabalho próximo daquilo que foi a série B em Hollywood, designadamente a nível dos cenários (o filme foi rodado no Novo México), o que, salvo raras excepções, mesmo essas discutíveis, sempre tem funcionado muito bem na sua obra. Aliás, a dinâmica do filme torna as personagens seres em movimento, com um objectivo a cumprir, como habitualmente sucede nos seus filmes, o que as torna interessantes por si próprias e faz mover o filme sem quebra de interesse, como aliás acontecia nos melhores casos da série B.
                        
        Se Natasha Henstridge é uma boa surpresa, Ice Cube transmite a sua carga pessoal e mítica na composição de Desolation e os restantes actores e actrizes cumprem na perfeição, aquilo que será de salientar é o facto de a uma personagem feminina ser dado papel de destaque na narrativa no desempenho de funções normalmente atribuídas a homens, o que para além de não ter precedente que me ocorra na obra do cineasta, salvo em filmes de terror, deve ser considerado de grande modernidade. Para além disso, a força em comando das operações na actualidade da narrativa é um Matriarcado, o que não é de maneira nenhuma indiferente, e a ambiguidade do final, tão do gosto do autor, faz explodir toda a carga energética típica dos seus filmes, enquanto lança "Fantasmas de Marte, de John Carpenter" para novos patamares narrativos, expressivos e de significação. A fotografia, de Gary B. Kibbe como acontece nos seus filmes desde 1993, e a música, de novo, como quase sempre sua, desta vez também de Anthrax, participam na indiscuível qualidade visual e rítmica, e no equlíbrio formal do filme.
       Hoje um dos nomes maiores do cinema americano, John Carpenter continua, de filme em filme, a surpreender positivamente, a rasgar e prosseguir um percurso, iniciado na década de 70 do século XX, que é pessoal e único no quadro do cinema contemporâneo, assumindo a herança do clássico Howard Hawks e mostrando sempre uma grande mestria, o que o torna um dos grandes cineastas da actualidade, lado a lado com Clint Eastwood, Martin Scorsese, David Lynch e Terrence Malick. Basta, neste caso, atentar na estrutura temporal da narrativa, e notar como ela não quebra a dinâmica do filme, para o perceber com toda a clareza.

Dezembro 2006

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