“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Um cinema da exigência

 “Reis e Rainha”/”Rois et Reine”, de Arnaud Desplechin (2005), é o segundo filme deste cineasta francês a estrear no circuito comercial português – o primeiro foi “Esther Khan” (2000), que tinha deixado a melhor das impressões. Entre um e outro filme, ele fez “Léo, en jouant «Dans la compagnie des hommes»” (2003), filme notável que confirma a impressão que dele tínhamos desde os seus primeiros filmes – “La Sentinelle” (1992) e “Comment je me suis disputé (ma vie sexuelle)” (1996).
            Que impressão era essa? A de um cineasta perfeitamente consciente e senhor dos meios da sua arte e das condições do seu tempo, nomeadamente no cinema. Daqui resultava não apenas um apuro formal mas a consciência, por parte de Desplechin, de ter um passado antes de si no cinema, o que o fazia enveredar por caminhos de grande exigência estética e de uma certa complexificação das narrativas, nomeadamente por via da extensão temporal delas.
                                                   
     “Reis e Rainha” surge já numa outra fase da obra do autor, em que a exigência estética como que é exponencializada pela exigência da narrativa complexa, no prolongamento do caminho inicialmente seguido por ele.
     Temos personagens muito diferentes, com as quais sucessivamente entramos em relação de cumplicidade até percebermos que, como num filme de Eric Rohmer, os dados narrativos inicialmente dispostos não correspondem aos do ponto de chegada do filme. A abundância de diálogos e a riqueza fílmica tornam este filme um dos mais interessantes a que nos foi dado assistir nos últimos tempos, porque percebemos que as personagens evoluem e se transformam ao longo da narrativa, longe dos arquétipos clássicos de figuras imutáveis, esfíngicas mas paradas no tempo e nas situações que lhes era dado viverem. No seu melhor, o cinema da viragem do século acompanha as mudanças pessoais e relacionais das suas personagens, e é aí precisamente que se situam os filmes de Arnaud Desplechin.
      Ora isto exige actores especialmente aptos a darem rosto e corpo à mudança gerada pela passagem do tempo e pelo aparecimento de novas circunstâncias, actores e actrizes de entrega sem reservas às suas personagens, questão relativamente à qual o cinema francês continua muito bem apetrechado – neste caso com Emmanuelle Devos e Mathieu Amalric, Catherine Deneuve e Maurice Garrel. Mas exige também uma disponibilidade especial do espectador, porque o faz afastar-se dos parâmetros usuais da recepção fílmica, uma vez que um filme como este apela para a atenção e a paciência de uma maneira hoje em dia invulgar, pois em “Reis e Rainha” somos convidados a captar as pequenas variações como as grandes mudanças das personagens, e isso só se consegue entrando no tempo fílmico em que a narrativa decorre.                           
                              
        Pode não ser fácil, mas nunca ninguém disse (eu, em todo o caso, nunca disse) que assistir a um filme tenha que ser uma coisa fácil – embora todos nós saibamos quão fácil isso é no cinema comercial, nos melhores e nos piores casos. O que acontece é que, neste filme, não só as imagens mas as personagens nos olham, como se nos desafiassem a entrarmos na sua pele mesmo se nelas não nos reconhecermos.
       Penso que por aí passa grande parte do fascínio de “Reis e Rainha” e, em geral, dos filmes de Arnaud Desplechin, um cineasta do seu e do nosso tempo, um tempo em que, como todos sabemos, as coisas não são normalmente fáceis, e as marcas da passagem do tempo ganham em evidência e em consequências.
      Nestes tempos apressados que vivemos é preciso ter tempo para nos expormos à experiência fílmica e humana de um filme como este, à semelhança do que no passado aconteceu, por exemplo, com os filmes de John Cassavetes, em quem, depois de “Reis e Rainha”, Arnaud Desplechin me faz pensar.

Março 2007

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