"Transe”, o
último filme de Teresa Villaverde, e “Juventude em marcha”, o último de Pedro
Costa, ambos de 2006, dão-nos conta do momento actual de uma geração do cinema português que
se iniciou no cinema por volta de 1990. E aquilo que esses filmes nos mostram
dos seus autores é verdadeiramente admirável e dá-nos conta de que o cinema
português, no seu melhor, continua a ser muito bom e a ter marcas
características próprias.
Não são, nem ele nem ela, cineastas
de muitos filmes, mas são ambos criadores inteiramente pessoais e originais, ao
ponto de se poder dizer que, sem eles, o cinema português não poderia ser o que
é actualmente. Desse modo, as personagens dos respectivos últimos filmes
surgem-nos como radicais deserdados, que vivem uma vida espectral, o que me
permite juntar os dois filmes. Senão vejamos.
A Sónia/Ana Moreira de “Transe”
atravessa a Europa, da Rússia a Portugal, tendo-se apenas a si própria e
precisamente por isso. É mais uma peça de um tráfico degradante, que a cineasta
cria e resolve acompanhar, e a que a actriz dá corpo. De tal tráfico, embora
todos saibamos que existe, todos somos desconhecedores dos meandros, e até
haverá, porventura, quem prefira permanecer na ignorância, fazendo, assim, de
conta de que não existe. Dele, porém, nos fala o filme de Teresa Villaverde de
uma forma clara, documentada, sem meias tintas para adoçar as coisas. Com ela
vamos até ao coração de situações inaceitáveis mas verdadeiras, sem que ela,
autora, hesite em nos dar por imagens a vivência interior da protagonista, com
o que confere ao filme toda a carga ficcional sem lhe retirar a verdade.
Tal como Pedro Costa, Villaverde é
uma grande cineasta do seu tempo, virada para a vida e aberta para o mundo, o
que faz da sua visão da vida e do mundo o material dos seus filmes. Tal como
ele, ela não deforma, não desvirtua mesmo quando aparentemente estetiza, como
em “Transe” acontece. Limita-se a não se ficar pelas aparências documentais
mais evidentes, e por isso aqui acompanha uma personagem ficcional que é uma
síntese mais que perfeita das situações reais: insustentável. E é com grande
simplicidade de meios, com grande argúcia sobre a forma como expor uma
determinada situação através da explanação da sua vivência que ela o faz, sem
concessões ao gosto fácil nem atracção por quaisquer ribaltas. Isto é cinema
português actual puro e duro, no seu melhor, e uma sequência perfeitamente
consistente de “Cold Wa(te)r”, a curta-metragem da autora para “Visions de
l’Europe” (2004) (em que o episódio dela era, juntamente com os de Béla Tarr e de Aki
Kaurismaki, o melhor).
Em “Juventude em marcha”, por sua
vez, Pedro Costa, fiel a si próprio, acompanha personagens do seu filme
anterior “No Quarto da Vanda” (2000), na sua mudança do Bairro das Fontaínhas para o
Casal da Boba.
Ventura, cabo-verdeano que sofreu um
acidente de trabalho, foi deixado pela mulher mas tem muitos filhos e escreve
cartas do conterrâneos de Lisboa para os familiares na sua terra, assume agora
o papel mais importante, mas aqui reencontramos a Vanda do filme anterior, que
deixou a droga e anda em tratamento, a quem morreram a mãe e a irmã. Só que as
coisas não são tão simples como isso porque o cineasta ficcionaliza e, ao
fazê-lo, cruza vários tempos no interior das personagens, o que confere a estas
um lado intemporal, tanto mais intemporal quanto mais radicado no presente.
Assim, Ventura como que escreve sempre a mesma, interminável carta, e Vanda
acolhe-o em sua casa como um pai a quem se conta.
Prosseguindo um trabalho depurado
que vem de “Ossos” (1997) e de “No Quarto da Vanda”, Pedro Costa adopta uma estética,
que é também uma ética, do plano fixo, em que os raros movimentos de câmara
surpreendem, como condição de chegar ao âmago das suas personagens
respeitando-lhes as respectivas figuras humanas. O tratamento do som,
nomeadamente dos ruídos, assume neste filme um novo despojamento, com a
utilização dos ruídos provenientes da extremidade do plano (caso do televisor no
quarto), de ruídos provenientes do fora de campo e de ruídos que surgem como
mais abstractos, o que, tudo junto, confere uma estranha musicalidade ao filme.
Como Teresa Villaverde, também Pedro
Costa não hesita em estetizar na aparência, quer no enquadramento quer em
certos diálogos, como os que decorrem durante as refeições, assim como em recorrer
sistematicamente a planos longos em que, até por serem fixos, o tempo entra, se
sente e é mesmo assim.
Como em “Transe”, também em
“Juventude em marcha” a nobreza dos deserdados torna-se visível, patente, e as
personagens de um e do outro filme assumem uma dimensão inusitada, outra,
devido ao rigor estético mas também humano com que são trabalhadas. Se há uma
poética própria de cada um dos cineastas em cada um destes filmes, ela em caso
algum funciona como acréscimo, como embelezamento, mas como parte essencial das
estratégias fílmicas de cada um dos autores, como elemento indispensável para
chegar, sem rodeios, à verdade nua e crua.
Também com Pedro Costa estamos
(continuamos) no “núcleo duro” do cinema português actual no seu melhor. No seu
mais recente filme ele prossegue mesmo o diálogo com Danièle Huillet e
Jean-Marie Straub, explicitado em “Onde jaz o teu sorriso?”/Où gît votre sourire enfoui?" (2001) mas que vem
de uma admiração e de um respeito antigos, que estabelecem com eles laços de
cumplicidade para além dos meramente estéticos, embora também neles – e
“Juventude em marcha” pode mesmo ser considerado como o mais straubiano dos
filmes do autor, sem prejuízo de todas as outras boas influências detectáveis e
que não são de agora: Robert Bresson, António Reis, Yasujiro Ozu, nomeadamente.
No caso de Teresa Villaverde falou-se da influência de Andrei Tarkovski, mesmo
de Federico Fellini, mas penso que são referências insuficientes para um filme
tão grande como “Transe” é.
Dizem-me que há muito ruído, muita
festa no cinema e, especialmente, no audiovisual televisivo português, o que
até posso compreender. No entanto, este é o som que me interessa e que julgo
ser o mais relevante esteticamente no cinema que actualmente se faz entre nós,
por muito que respeite, e obviamente respeito e até aprecio, outros percursos
pessoais extremamente coerentes que chegam aos nossos ecrãs, como os de
Fernando Lopes e de José Fonseca e Costa, mesmo o de Joaquim Leitão. E com
todos, evidentemente, é preciso “ver para crer”.
Março 2007
Sem comentários:
Enviar um comentário