“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Sabedoria

     “As Bandeiras dos Nossos Pais”/”Flags of Our Fathers” e “Cartas de Iwo Jima”/”Letters from Iwo Jima”, ambos de 2006, formam um díptico na obra de Clint Eastwood. Um díptico necessário porque, ao fazer o primeiro desses dois filmes, em que mostra o lado americano de um episódio célebre da batalha do Pacífico durante a II Guerra Mundial, o cineasta sentiu curiosidade e interesse pelo “outro lado”, o lado japonês durante esse mesmo episódio.
      Diga-se desde já que este desdobrar do olhar do criador cinematográfico não é frequente e demonstra, só por si, a maturidade e a liberdade de espírito de Clint Eastwood, característica, esta última, que atravessa alguns dos pontos cimeiros da sua obra, como “Bird – O Fim Do Sonho”/"Bird" (1988), “Caçador Branco, Coração Negro”/"White Hunter Black Heart" (1990), “As Pontes de Madison County”/"The Bridges of Madison County" (1995) e “Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal”/"Midnight in the Garden of Good and Evil" (1997). A primeira, a maturidade, tanto temática e narrativa como fílmica e formal, impumha-se desde os seus dois filmes anteriores, “Mystic River” (2003) e "Sonhos Vencidos"/“Million Dollar Baby” (2004), no primeiro dos quais, aliás, estava soberbamente presente a preocupação de dar no mesmo filme dois ou três pontos de vista diferentes, e também em “Piano Blues”, o episódio que dirigiu em 2003 para a série “The Blues”, de Martin Scorsese.
      “As Bandeiras dos Nossos Pais” é um filme muito bom mas de estrutura tanto narrativa como formal mais convencional se comparado com “Cartas de Iwo Jima”. Aí se trata, na verdade, de traçar um percurso diacrónico entre presente e passado, entre o filho de um dos protagonistas do episódio, James Bradley, que inquire no presente sobre o que se passou realmente no momento em que foi tirada a fotografia de Joe Rosenthal, que na época tornou famoso o episódio do hastear da bandeira americana no cimo do monte Suribachi, e esse mesmo passado que, por sua vez, se desdobra entre o que aconteceu na ilha e o posterior
aproveitamento propagandístico nos Estados Unidos.
                                          
        Se digo que o filme é mais convencional é porque todo o dispositivo narrativo e fílmico articula-se com grande clareza e com o intuito de mostrar como uma máquina de propaganda bem afinada “cria” acontecimentos, “cria” factos que vêm a impor-se como verdade. Aliás, é apenas devido à pretensão de tirar partido da fotografia e do episódio que ela documenta que se levanta no filme a questão de saber “quem é quem” nessa fotografia. E são as reacções no presente dos protagonistas do episódio ou dos familiares deles que vêm tornar crítico o panorama que o realizador traça de um episódio, à parte este detalhe considerado indiscutível da II Guerra Mundial.
          Mas já esta preocupação de descobrir a verdade que se esconde por trás de uma verdade oficial demonstra, da parte de Clint Eastwood, um grande desassombro e uma grande sabedoria, aquele tipo de sabedoria que se costuma associar com o avançar da idade (e que John Ford tinha quando fez “O Homem Que Matou Liberty Valance”/"The Man Who Shot Liberty Valance", de 1962, e “O Grande Combate”/"Cheyenne Automn", de 1964). De facto, o desdobrar dos acontecimentos no próprio passado permite acompanhar os três protagonistas, John Bradley/Ryan Philippe, Rene Gagnon/Jesse Bradford e Ira Hayes/Adam Beach, não só na ilha de Iwo Jima, mas durante a subsequente operação de propaganda doméstica, com as diferentes reacções de cada um, o que torna o filme particularmente esclarecedor do ponto de vista político, e tanto mais pertinente quanto coincide temporalmente com uma outra guerra americana, a do Iraque, em que as relações da comunicação social com a máquina de guerra são muito mais
equívocas do que as que aqui nos são mostradas.
                                                    
          Como se fora pouco este objectivo de desmontagem, aliás plenamente atingido, Eastwood avança para o segundo filme, “Cartas de Iwo Jima”, em que acompanha nem mais nem menos que o outro lado, derrotado, desse mesmo episódio bélico: o japonês.
        Em termos comparativos, será de salientar que, enquanto no primeiro filme estava em causa uma conquista, a de uma ilha e de uma montanha nela situada, neste segundo filme está em causa uma defesa, a dessa mesma ilha, baseada num dispositivo de colocação das forças militares em túnéis. Uma segunda comparação que desde logo se impõe é entre a fotografia a cores do primeiro filme, aliás excelente, em especial na tentativa de recriação da época, e a cor puxada para os limites do preto e branco do segundo, sem que se verifique perda, antes acentuação do contraste.
      Estes dois aspectos surgem como perfeitamente consistentes entre si. Na verdade, o dispositivo defensivo em Iwo Jima puxa os japoneses para o interior da terra, para o subterrâneo, lugar onde a clareza das cores se dilui em favor de um generalizado negrume, estabelecido a partir de uma única fonte de luz. Se este elemento visual está muito bem dado, ele acompanha o carácter japonês de todo o filme, que o facto de ser interpretado por actores japoneses e falado em japonês imediatamente estabelece.
         Mas uma outra questão faz de “Cartas de Iwo Jima” um filme perfeitamente surpreendente e superior, que é o estabelecimento de passagens temporais entre o presente da acção e o passado dos respectivos protagonistas de uma maneira muito menos evidente, já que estabelecida a partir da correspondência desses protagonistas para a família no Japão, na maior parte dos casos, o que torna o processo utilizado mais subtil sem qualquer perda de eficácia. Além disso, ou por trás disso e estruturando-o, está uma grande sabedoria da montagem, que é onde a subtileza se estabelece de pleno, tornando o flash-back natural e até indispensável, uma vez que é ele que vai suportar o (aliás insuportável) presente da narrativa.
                                          
         Creio que fundamentalmente por estas razões, a que se vem acrescentar o contracampo estabelecido entre os dois filmes, nomeadamente do momento do desembarque americano na ilha, “Cartas de Iwo Jima” representa a quinta-essência da arte cinematográfica de Clint Eastwood, firmando-o definitivamente num lugar original, a que se tem dado o nome de “clássico”, no panorama do cinema americano contemporâneo.
         O genérico final no primeiro filme, a música em ambos e a precisa arte do enquadramento no segundo tornam, além do mais, inequívoco que estamos perante criações superiores de um cineasta de excepção, o que é confirmado pelo facto de o director de fotografia, Tom Stern, ser comum aos dois filmes, sendo eles tão diferentes como são nesse aspecto, e por a música do primeiro ser composta pelo próprio realizador.
       E que “Cartas...” é um filme superior é definitivamente estabelecido pela simplicidade dos meios narrativos utilizados, pelos percursos e destinos dos diferentes soldados japoneses e pela leitura da carta do soldado americano no final. Aí a prova de mestria do cineasta torna-se absolutamente inequívoca, na aliança da forma fílmica, com a sua carga expressiva própria, e da narrativa, com os seus meandros temporais.

Junho 2007

Sem comentários:

Enviar um comentário