"Pierre ou les
ambiguités", de Leos Carax, é a versão longa, completa de "Pola
X" (1999), filme que me fez descrer do talento do cineasta. Porque a versão
integral só me foi acessível muito depois, impõe-se que diga alguma coisa sobre
o filme e justifica-se que enuncie em linhas gerais o problema que ele levanta.
Carax não é um cinesta fácil, antes
se impôs pelo rigor, a originalidade e a exigência nos poucos filmes que dirigiu
anteriormente: "Boy meets girl" (1984), "Mauvais sang", (1986), e "Os Amantes da Ponte Nova"/"Les Amants du Pont-Neuf" (1988/1991), este um dos
grandes filmes franceses do final do século passado. Depois foi o silêncio até
"Pola X", que na sua versão comercial me deixou fraca impressão na
medida em que o filme, numa segunda leitura, permitia que se identificasse o
protagonista, um artista maldito porque incompreendido, com o próprio cineasta.
Ora essa leitura, que surgia como evidente, torna-se desajustada perante o filme
na sua versão completa, pela qual perpassa um sopro lírico e trágico inegável
que o torna um objecto fascinante. O melhor da inspiração de
Leos Carax encontra aqui uma concretização à medida do que conhecíamos dele, e
com este filme ele reafirma-se como um dos melhores cineastas franceses revelados
nos anos oitenta.
Ora
acontece que o cinema tem sido, ao longo da sua história, um campo
particularmente propício a fenómenos como este, que frequentemente surgem
associados a exigências da produção ou a opções do cineasta. E para um caso
feliz, revelado nos anos noventa do século XX, o de "À Beira do Abismo"/"The Big Sleep", de Howard Hawks (1946), em que ao assistirmos
ao "Director's cut" percebemos como o grande cineasta americano fez
bem em ceder às sugestões do produtor Hal B. Wallis, nomeadamente no
aproveitamento de Lauren Bacall no seu segundo filme com Humphrey Bogart, são
inúmeros os casos em que, sobretudo em tempos mais recentes, as versões
comerciais ficam aquém dos resultados que seriam de esperar. Será o caso,
também com estreia muito recente entre nós, de "Apocalypse Now Redux" (2001), o filme em
que Francis Ford Coppola adiciona ao seu filme de 1979 algum
material que dele estava ausente por opção de montagem. Ao comparar, percebemos que se o filme primitivo tinha marcado uma data e uma
época na história do cinema, o filme tal como agora re-apresentado é uma das
obras capitais da história do cinema, pelo que permite completar do quadro
geográfico e humano da intriga e da acção.
Também
no cinema português esta questão se tem mostrado relevante, e em tempos
recentes, com "Aqui D'El Rey", de António-Pedro Vasconcelos (1992), que só na
sua versão completa para cinema dá a plena medida da complexidade das
personagens e do filme, e com "Vale Abraão", de Manoel de Oliveira (1993),
em que a versão integral aumenta o rigor narrativo e plástico que o
autor lhe quis imprimir.
E
para quem conhece minimamente bem a história do cinema, é indiscutível que deve
ser o cineasta quem diz - quem "dita" - como um filme deve ser, sob
pena de serem cometidos autênticos crimes contra o cinema enquanto arte:
"Aves de Rapina"/"Greed", de Eric von Stroheim (1923/1925), continua a
ser o caso paradigmático, até porque irrecuperável, a este respeito. Nos casos
que anteriormente refiro sumariamente só Howard Hawks não tinha razão, mas como
grande cineasta e homem inteligente que foi reconheceu-o e aceitou-o. De resto, o princípio da
prevalência da vontade do responsável pelo filme deve sempre prevalecer, como
nesse caso afinal também aconteceu.
Um
cineasta com o qual o problema das duas versões de um mesmo filme se tem posto
com frequência é o também francês Jacques Rivette, de quem recentemente chegou
ao circuito comercial português o admirável "Sabe-se lá"/"Va
savoir" (2001), admirável mesmo na sua versão comercializada entre nós, mas que o
deverá ser ainda mais na sua versão completa, "Va savoir+". Aliás, o
mesmo acontece com o seu anterior "Secret: Défense" (1998), nunca estreado
comercialmente em Portugal, à semelhança do que sucedera com filmes seus dos anos 60 e 70. Ora precisamente a partir do caso Rivette poderemos tentar
generalizar dizendo que é normalmente em filmes muito longos que o problema das
duas versões se coloca, muitas vezes por imperativos comerciais, o que não deve
impedir o acesso às versões integrais da responsabilidade do próprio autor, nem
que seja em sessões especiais, porque pode admitir-se a hipótese da falta de
interesse de distribuidores e de exibidores em filmes com duração superior a
três horas e meia, quatro horas.
Se
o problema se me impôs como merecedor desta breve reflexão foi precisamente por
causa de "Pola X", de Leos Carax. Com efeito, "Pierre ou les
ambiguités", a sua versão longa, mostra que o filme foi feito para um
outro fôlego, beneficiava de uma inspiração que necessitava de tempo para se
espraiar e explanar plenamente em todas as suas virtualidades expressivas, fílmicas e narrativas, que são
muitas, com a sua enorme audácia e carga poética - presentes mesmo na versão mais curta, embora menos visíveis -, que me levam a retirar as reticências que punha ao filme antes de
aceder a essa versão integral. No prosseguimento dos seus filmes anteriores, Carax é, de facto, um dos maiores cineastas da actualidade, como aí demonstra de forma exuberante.
E a conclusão destas reflexões, que julgo oportunas e pertinentes, é que se o cineasta deve ter acesso à montagem final e definitiva do seu filme, também o espectador deve ver reconhecido o seu próprio direito de a ela aceder, o que obviamente não tem nada a ver com pretensiosismos de substituição digital da imagem que desvirtuam o sentido e a verdade originais dos filmes. Coisa diferente será o cineasta jogar com a existência de duas versões do mesmo filme, uma mais longa e outra menos longa, ambas da sua autoria, caso em que a ambas o espectador interessado deve poder aceder.
E a conclusão destas reflexões, que julgo oportunas e pertinentes, é que se o cineasta deve ter acesso à montagem final e definitiva do seu filme, também o espectador deve ver reconhecido o seu próprio direito de a ela aceder, o que obviamente não tem nada a ver com pretensiosismos de substituição digital da imagem que desvirtuam o sentido e a verdade originais dos filmes. Coisa diferente será o cineasta jogar com a existência de duas versões do mesmo filme, uma mais longa e outra menos longa, ambas da sua autoria, caso em que a ambas o espectador interessado deve poder aceder.
Dezembro 2006
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