“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Por Carax: as versões

      "Pierre ou les ambiguités", de Leos Carax, é a versão longa, completa de "Pola X" (1999), filme que me fez descrer do talento do cineasta. Porque a versão integral só me foi acessível muito depois, impõe-se que diga alguma coisa sobre o filme e justifica-se que enuncie em linhas gerais o problema que ele levanta.
      Carax não é um cinesta fácil, antes se impôs pelo rigor, a originalidade e a exigência nos poucos filmes que dirigiu anteriormente: "Boy meets girl" (1984), "Mauvais sang", (1986), e "Os Amantes da Ponte Nova"/"Les Amants du Pont-Neuf" (1988/1991), este um dos grandes filmes franceses do final do século passado. Depois foi o silêncio até "Pola X", que na sua versão comercial me deixou fraca impressão na medida em que o filme, numa segunda leitura, permitia que se identificasse o protagonista, um artista maldito porque incompreendido, com o próprio cineasta. Ora essa leitura, que surgia como evidente, torna-se desajustada perante o filme na sua versão completa, pela qual perpassa um sopro lírico e trágico inegável que o torna um objecto fascinante. O melhor da inspiração de Leos Carax encontra aqui uma concretização à medida do que conhecíamos dele, e com este filme ele reafirma-se como um dos melhores cineastas franceses revelados nos anos oitenta.
      Ora acontece que o cinema tem sido, ao longo da sua história, um campo particularmente propício a fenómenos como este, que frequentemente surgem associados a exigências da produção ou a opções do cineasta. E para um caso feliz, revelado nos anos noventa do século XX, o de "À Beira do Abismo"/"The Big Sleep", de Howard Hawks (1946), em que ao assistirmos ao "Director's cut" percebemos como o grande cineasta americano fez bem em ceder às sugestões do produtor Hal B. Wallis, nomeadamente no aproveitamento de Lauren Bacall no seu segundo filme com Humphrey Bogart, são inúmeros os casos em que, sobretudo em tempos mais recentes, as versões comerciais ficam aquém dos resultados que seriam de esperar. Será o caso, também com estreia muito recente entre nós, de "Apocalypse Now Redux" (2001), o filme em que Francis Ford Coppola adiciona ao seu filme de 1979 algum material que dele estava ausente por opção de montagem. Ao comparar, percebemos que se o filme primitivo tinha marcado uma data e uma época na história do cinema, o filme tal como agora re-apresentado é uma das obras capitais da história do cinema, pelo que permite completar do quadro geográfico e humano da intriga e da acção.
                                     
      Também no cinema português esta questão se tem mostrado relevante, e em tempos recentes, com "Aqui D'El Rey", de António-Pedro Vasconcelos (1992), que só na sua versão completa para cinema dá a plena medida da complexidade das personagens e do filme, e com "Vale Abraão", de Manoel de Oliveira (1993), em que a versão integral aumenta o rigor narrativo e plástico que o autor lhe quis imprimir.
      E para quem conhece minimamente bem a história do cinema, é indiscutível que deve ser o cineasta quem diz - quem "dita" - como um filme deve ser, sob pena de serem cometidos autênticos crimes contra o cinema enquanto arte: "Aves de Rapina"/"Greed", de Eric von Stroheim (1923/1925), continua a ser o caso paradigmático, até porque irrecuperável, a este respeito. Nos casos que anteriormente refiro sumariamente só Howard Hawks não tinha razão, mas como grande cineasta e homem inteligente que foi reconheceu-o e aceitou-o. De resto, o princípio da prevalência da vontade do responsável pelo filme deve sempre prevalecer, como nesse caso afinal também aconteceu.
      Um cineasta com o qual o problema das duas versões de um mesmo filme se tem posto com frequência é o também francês Jacques Rivette, de quem recentemente chegou ao circuito comercial português o admirável "Sabe-se lá"/"Va savoir" (2001), admirável mesmo na sua versão comercializada entre nós, mas que o deverá ser ainda mais na sua versão completa, "Va savoir+". Aliás, o mesmo acontece com o seu anterior "Secret: Défense" (1998), nunca estreado comercialmente em Portugal, à semelhança do que sucedera com filmes seus dos anos 60 e 70. Ora precisamente a partir do caso Rivette poderemos tentar generalizar dizendo que é normalmente em filmes muito longos que o problema das duas versões se coloca, muitas vezes por imperativos comerciais, o que não deve impedir o acesso às versões integrais da responsabilidade do próprio autor, nem que seja em sessões especiais, porque pode admitir-se a hipótese da falta de interesse de distribuidores e de exibidores em filmes com duração superior a três horas e meia, quatro horas.
                                                          
      Se o problema se me impôs como merecedor desta breve reflexão foi precisamente por causa de "Pola X", de Leos Carax. Com efeito, "Pierre ou les ambiguités", a sua versão longa, mostra que o filme foi feito para um outro fôlego, beneficiava de uma inspiração que necessitava de tempo para se espraiar e explanar plenamente em todas as suas virtualidades expressivas, fílmicas e narrativas, que são muitas, com a sua enorme audácia e carga poética - presentes mesmo na versão mais curta, embora menos visíveis -, que me levam a retirar as reticências que punha ao filme antes de aceder a essa versão integral. No prosseguimento dos seus filmes anteriores, Carax é, de facto, um dos maiores cineastas da actualidade, como aí demonstra de forma exuberante.
      E a conclusão destas reflexões, que julgo oportunas e pertinentes, é que se o cineasta deve ter acesso à montagem final e definitiva do seu filme, também o espectador deve ver reconhecido o seu próprio direito de a ela aceder, o que obviamente não tem nada a ver com pretensiosismos de substituição digital da imagem que desvirtuam o sentido e a verdade originais dos filmes. Coisa diferente será o cineasta jogar com a existência de duas versões do mesmo filme, uma mais longa e outra menos longa, ambas da sua autoria, caso em que a ambas o espectador interessado deve poder aceder.

Dezembro 2006

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